"Se você entrar na farmácia tossindo, paga 34% de
imposto; se entrar latindo, paga só 14%". (Joelmir Beting -1936-2012)
Frases de efeito como esta, sempre carregadas de bom humor, davam o tom
das crônicas diárias do jornalista Joelmir Beting. Em que pese o humor
explícito, a afirmação encerra uma perversidade.
Aproveitando-se da discrepância tributária, a indústria
farmacêutica, isoladamente ou através de entidades representativas, vem
a público justificar os altos preços dos medicamentos. A alta
tributação é, sem dúvida, um dos fatores que mantém o preço dos
medicamentos nas alturas, mas há outros tão ou mais perversos.
Em relação aos medicamentos novos, os preços sugeridos pelos
fabricantes são aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa). Ocorre que, quase como regra, estes preços por vezes até
extorsivos são mantidos elevados por 10 anos, período de validade das
patentes.
Um dos argumentos da indústria é a necessidade de recuperar o
investimento na pesquisa, no entanto, em 2004, o médico e cientista
Lown Bernard já afirmava, no artigo "A Crise das Drogas III: Corrupção
da ciência", que "... empresas farmacêuticas americanas investem muito
mais na promoção dos remédios do que em seu desenvolvimento."
Enquanto dura a reserva de mercado mantida pela lei de patentes, a
indústria farmacêutica lança mão de estratégias de Marketing, no mínimo,
questionáveis.
Tanto que a resolução 1939/2010, do Conselho Federal de Medicina,
proíbe os médicos de divulgarem junto aos pacientes os chamados
"cartões de desconto", por entender que a prática, além de explicitar
um conflito de interesse, viola o necessário sigilo do paciente.
Naquele ano, em editorial, a Folha de S. Paulo abordou o assunto,
ressaltando que "se o laboratório tem condições de oferecer descontos
significativos para alguns clientes, deveria fazê-lo no mercado
propriamente dito."
Desde então, a "BigPharma", como a indústria é conhecida, eliminou o
cartão de descontos e criou um número para chamadas telefônicas
gratuitas, por meio das quais presenteia o próprio paciente com
desconto. Quem fornece este número?
O médico, obviamente, alvo direto da propaganda de medicamentos, já
que a legislação, salvo algumas exceções, proíbe a propaganda dirigida
diretamente ao consumidor final.
Funciona assim: ao entrar em contato com o 0800, o paciente fornece
todos os dados pessoais, informa quem receitou o medicamento e, por
vezes, a condição econômica, para que seja definido o percentual de
desconto ao qual terá direito. Esta prática de fidelização de clientela,
tanto médicos quanto pacientes, também infringe o teor da Resolução
1939/2010.
Vários medicamentos alcançam pelo 0800, e somente por meio dele,
descontos que ultrapassam 50%. Um exemplo prático, entre muitos outros: o
preço máximo ao consumidor oferecido no balcão da farmácia por uma
caixa de 28 cápsulas de 60 miligramas do antidepressivo Duloxetina
(Cymbalta®), com ação sobre dores crônicas, é R$ 300,09. Ligando para o
0800, o desconto pode chegar a 66%.
Ora, se é possível dar este desconto imediatamente após o lançamento
de um medicamento, qual a razão da Anvisa aprovar o preço extorsivo
apresentado pela indústria? Até quando médicos e população ficarão
reféns destas armadilhas que movem a economia e tratam medicamentos como
se fossem um produto de consumo como outro qualquer e não um bem da
saúde pública?
Paulo Roberto Donadio
Médico reumatologista e professor de Reumatologia do Departamento de Medicina da Universidade Estadual de Maringá (UEM).