Semelhante a muitos universitários, Marília Ignatius Nogueira Carneiro, 32 anos, sonhava em fazer ingressar em um curso de mestrado. Durante dois anos, ela tentou uma vaga. Em vão.
No ano passado, determinada, ela se debruçou sobre livros e materiais de pesquisa. Hoje, é uma das acadêmicas do mestrado em Educação da
Universidade Estadual de Maringá (UEM). A história de luta e
conquista de Marília ganha uma dimensão especial, por um detalhe: ela é
surda desde que nasceu.
Portadora da síndrome de Waardenburg
(alteração genética, que pode provocar surdez, cegueira, entre outras
disfunções), Marília é um dos 20 estudantes da UEM portadores de
necessidades especiais.
Todos são acompanhados pelo Programa Multidisciplinar de Pesquisa e Apoio à Pessoa com Deficiência e Necessidades Especiais (Propae), criado, em 1994, para servir de suporte a esses alunos.
Durante as aulas, o Propae indica alguns acadêmicos, chamados de “monitores”, para auxiliar estudantes surdos, cegos, com baixa visão, com dislexia, entre outras deficiências.
“Geralmente, são alunos do mesmo curso. Os monitores são escolhidos pelo Programa ou indicados pelos deficientes. Pelo trabalho, eles recebem uma bolsa-auxílio”, explica a coordenadora do projeto, Érica Piovam de Ulhôa Cintra.
A estudante do curso de História, Rafaela Barbieri, já foi monitora de alunos cegos. “Foi proveitoso, pois por trabalhar a questão da memória, por causa da dificuldade deles de registrar as aulas, eu tinha que fazer a revisão de tudo que estudávamos. Isso, ajudou-me a compreender melhor o conteúdo”, destaca. Os monitores também são responsáveis por levar os textos estudados ao Propae, onde é feita a tradução para o Braille.
Para conseguir estudar, Marília recebe o auxílio de um intérprete, que traduz em libras as falas do professor e o debate dos colegas. A tradutora dela é Paula Beatriz Sanches, que conclui o mestrado em Educação, onde também pesquisa aprendizado para surdos. “Minha irmã é surda, por isso, sempre fui apaixonada pelo tema”, ressalta.
Para chegar onde está, Marília teve que ultrapassar diversas barreiras e até desistir de um sonho. Ela se graduou em Gastronomia, no Cesumar, mas, em função da deficiência, não conseguiu emprego. “Eu queria ser Chef, mas todos diziam que seria impossível eu me comunicar com a equipe”, afirma.
Seguindo os conselhos da mãe, Clélia Ignatius, professora aposentada da UEM e fundadora da Associação de Surdos de Maringá, ela decidiu continuar os estudos na área que mais domina, e se formou em Letras Libras pela Universidade Federal da Grande Dourados (MS).
“Eu dou aula de libras há 14 anos. Minha mãe sempre dizia que eu deveria ajudar a difundir essa linguagem, para tornar o mundo mais igualitário”, declara. Hoje, Marília ministra aulas de libras aos estudantes de licenciatura da UEM.
Além da monitoria aos estudantes deficientes, a UEM oferece um vestibular diferenciado para eles. Aos portadores de deficiência visual - a maior demanda - é ofertada prova em Braille ou em softwares específicos, para os casos de baixa visão. Para surdos, a prova é traduzida para libras ou softwares adequados.
“Também fazemos adequações em casos de deficiência física, dislexia e distúrbios psicológicos”, acrescenta Érica. O tempo para a realização das provas é maior e a correção também é diferenciada.
Para Marília, ter um intérprete em sala é uma conquista. Ela concluiu os estudos no Instituto Estadual de Educação, onde, na época, não havia intérpretes. “Eu insisti em fazer o ensino normal. Vivia isolada, porque ninguém conseguia se comunicar comigo. Era como se eu fosse uma estrangeira, que falasse uma língua incompreensível. Para entender as aulas, eu copiava o que o professor passava no quadro e depois pedia para minha mãe me ensinar. Também costumava gravar as aulas em gravador para meus familiares traduzirem”, recorda.
Marília luta, agora, para uma maior inclusão dos portadores de necessidades especiais na sociedade. “Demos alguns passos importantes na escola, mas é preciso mais. Eu, por exemplo, não consegui registrar uma queixa na delegacia, recentemente, porque não havia intérprete. Não há quem nos atenda em bancos, cartórios. Tudo isso faz com que os deficientes sintam medo de sair nas ruas. É necessário quebrar esse isolamento e dar oportunidade para que todos consigam viver adequadamente”, defende.
http://www.odiario.com/cidades/noticia/812724/aluna-da-uem-supera-surdez-e-garante-vaga-no-mestrado/