Infartos,
acidentes vasculares cerebrais e outras doenças do sistema circulatório
são as que mais matam no mundo. O pódio será delas por muito tempo, mas
a exclusividade foi perdida.
Atualmente, as agressões externas, conseqüência de violência urbana,
dividem o primeiro lugar em número de mortes. Só o trânsito faz 1,2
milhão de vítimas fatais no mundo por ano e deixa 50 milhões de
feridos.
No Brasil, a média de vidas perdidas a cada ano é próxima de 120 mil.
Não bastassem as mortes, o saldo maior da tragédia é a quantidade de
pessoas incapacitadas definitivamente para o trabalho.
A cada morte registrada, três pessoas ficam incapacitadas. "É como se a
cada ano, o Brasil perdesse uma Maringá inteira", diz o neurocirurgião
Cármine Salvarani, 42 anos, doutor em neurocirurgia e professor da
Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Em 2004, Salvarani implementou na cidade um projeto de prevenção de
acidentes. Os resultados positivos do estudo "Impacto de um programa
educativo na redução do neurotrauma" ajudaram a lançar as bases da Liga
do Trauma, da qual ele é coordenador.
A Liga pretende colocar os conhecimentos acadêmicos a serviço da
redução da gravidade dos traumas. De acordo com o médico, em 90% dos
casos, o acidente de trânsito é evitável, razão pela qual não deveria
ser chamado de acidente, mas de "conseqüência da falta de respeito
pelas normas de trânsito." Leia a seguir os principais trechos da
entrevista.
O Diário - Traumas e emergências médicas foram temas
do congresso médico realizado em Maringá recentemente. A discussão do
assunto vem em bom momento?
Cármine Salvarani - O tema não poderia ser mais atual,
pois canaliza toda a violência urbana e congrega 95% das especialidades
médicas. O trauma hoje é a principal causa de morte no mundo, empatado
com as doenças do sistema circulatório. Entre a população
economicamente ativa, dos 15 aos 44 anos, é a primeira causa. Por ano,
no mundo, 1 milhão e 200 mil pessoas morrem vítimas de acidentes de
trânsito e 50 milhões ficam feridas.
O surgimento da Liga do Trauma tem relação com essa realidade?
Sim. A Liga é uma reunião de professores, profissionais, estudantes e
sociedade civil com o mesmo objetivo, de colocar à disposição da
sociedade seus conhecimentos em forma de prevenção, educação e formação
de profissionais, ou seja, propostas para melhorar a qualidade de vida
das pessoas. No trânsito, essa melhora significa diminuir a gravidade
dos traumas.
Há quanto tempo a Liga do Trauma de Maringá existe?
Oficialmente, há um ano, mas, na prática, desde abril, depois do
primeiro curso que realizamos e do qual participaram 173 pessoas, entre
alunos e profissionais de saúde. A Liga é aberta a qualquer
interessado, mas algumas atividades dependem de pré-requisitos. Por
exemplo, alunos de Medicina do 5º e 6º anos e do último ano de
enfermagem poderão dar plantão no Siate e acompanhar os resgates.
Por que as ruas continuam sendo confundidas com campos de guerra?
Mesmo com particularidades regionais, de modo geral, o acidente de
trânsito decorre do desrespeito às leis. Uma série de fatores faz com
que haja mais ou menos acidentes, mas os principais são a falta de
educação, de fiscalização e de engenharia de tráfego. Em Maringá,
carecemos dos três. A educação do adulto é a mais difícil e só funciona
se vier junto com a fiscalização e a punição.
Como diferenciar a fiscalização educativa da indústria da multa?
Não existe indústria da multa. Existe um grupo de pessoas, que é a
maioria, que infringe a lei. A fiscalização só incomoda quem está fora
da lei, e esses gritam muito alto.
A prevenção foi tema de seu estudo no doutorado?
Sim. Implantamos o programa da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, o
"Pense Bem", em setembro de 2004. Analisamos a situação de Maringá um
ano antes dele ser implantado, durante sua vigência e um ano depois. E
verificamos que houve diminuição significativa da gravidade dos
acidentes e no número de óbitos, sem que tivesse havido interferência
de nenhum outro programa de prevenção. Em 2004, morreram 88 pessoas e,
em 2005, 63. A partir de 2006 as mortes no trânsito voltaram a crescer.
E a campanha da prefeitura da faixa de pedestres?
Ela foi lançada em novembro de 2005. Infelizmente, ela, que tinha a
louvável intenção de estabelecer uma relação de respeito entre
pedestres, motoristas e motociclistas, simplesmente acabou. A idéia,
que no início era boa, virou um verdadeiro caos, porque não teve
continuidade. E hoje ninguém mais sabe o que fazer, se atravessa ou não
na faixa.
Em matéria de trânsito, Maringá poderia se espelhar em alguma cidade brasileira do seu porte para diminuir a mortalidade?
O Brasil todo está fora do limite. Ao passo que no Japão há 3,2 mortes
para cada 10 mil veículos, em algumas cidades brasileiras há 40 mortes.
O trânsito produziu 10 mil vítimas durante o ano em que o senhor estudou?
Antes de responder é preciso esclarecer que, para o serviço de saúde,
quem sofre um arranhão no dedo é uma vítima. O acidente sem vítima é
aquele no qual houve a batida, mas ninguém se machucou. E há a vítima
fatal, que morre em decorrência da batida.
Dentro desse universo de pequenas tragédias, o que mais chamou sua atenção?
Do ponto de vista estatístico, foi confirmar que os números oficiais
são subestimados. Em 2005, oficialmente morreram 85 pessoas. Mas foram
88, nós descobrimos três óbitos a mais. E isso é natural, os sistemas
de registros no País ainda são muito ruins e isso não é um problema de
Maringá. Essas 10 mil vítimas encontradas no período que eu estudei
acrescentam 15% ao número oficial de vítimas registrado no município.
Quais poderiam ser as causas dessa diferença?
No momento do registro do boletim de ocorrência, a vítima que só teve
um arranhão pode passar despercebida. Quando se trata de números é
preciso definir qual é o banco de dados que vamos usar. Se a polícia, o
Instituto Médico Legal (IML) ou os serviços de saúde. As três fatais a
mais que encontrei estavam no IML, mas não foram computadas como óbito
em região urbana.
Qual é o maior problema dos acidentes de trânsito?
Além da fatalidade, é o fato da maior parte dos acidentados ficar com
seqüelas, incapacitados para trabalhar, aumentando a fila dos
beneficiários da Previdência. Para cada vítima fatal de acidente, três
ficam incapacitadas definitivamente para o trabalho. Se em Maringá
morrem, em média, 80 pessoas por ano, são 240 'encostadas'. No Brasil,
a cada ano, 360 mil pessoas ficam incapacitadas, pois morrem, em média,
120 mil. É como se todo ano tivéssemos uma Maringá inteira incapacitada.
Diante desses números, não parece ridículo continuar encarando acidente como algo imprevisível?
Quem está a 120 quilômetros por hora em uma avenida como a Tiradentes e
cruza um sinal vermelho está plenamente ciente que pode matar uma
pessoa. Em 90% dos casos, o acidente é previsível e não deveria ser
chamado de acidente, mas uma conseqüência à falta de respeito pelas
normas de trânsito.
Uma Liga de Trauma ativa pode influenciar na queda desses números?
Se não tivesse essa capacidade, eu nem teria começado. A prevenção
secundária, que é usar cinto, capacete, respeitar a velocidade e não
dirigir bêbado tem como ser abordada e medida. A universidade está
disposta a dar essa contribuição. Também temos idéia de criar um centro
de reabilitação com fisioterapeutas e psicólogos, porque não é só a
vítima do acidente que sofre, mas quem provoca também tem problemas de
fundo emocional.